Acordei com o berreiro de duas crianças que estariam a pouco mais de cinco metros da minha toalha. Resmunguei baixinho e virei-me. Não conseguindo voltar a adormecer, acabei por levantar parte do meu corpo pesado pela sonolência e deixei ficar-me ali sentado a observar as pessoas que caminhavam ao longo da praia e as gaivotas que faziam grandes razias às pequenas ondas que se formavam ao longo da costa. Ali mesmo ao lado permaneciam as duas crianças que se preparavam para o banho enquanto um adulto tentava proteger as suas peles pálidas com protector solar. Terminada essa acção e após a autorização do homem que as acompanhava, aqueles dois pirralhos deram início a um verdadeiro sprint até ao mar. O adulto, bem mais lentamente, acaba por os seguir. Reparo que olha fixamente para mim a meio do seu percurso. Encaro tal gesto como um sinal de penitência face ao espalhafato sonoro que os imberbes causaram no local. Pego no jornal e volto a deitar-me. Vou esfolhando-o ao sabor/por força do ligeiro vento que se ia sentindo naquela tarde de Julho. Passam vários minutos e sou surpreendido com alguém que me aborda: “Tem um cigarro?” – era o homem que acompanhava as crianças. Não tinha, mas percebo pela continuação da conversa que aquela pergunta tinha sido um mero pretexto de interpelação. Fico a saber que aquele trintão, que acabou por se sentar a poucos metros de mim, é o pai dos putos, que mora a mais de 40 Km daquela praia mas que por amor a ela despende mais dinheiro em gasóleo e portagens do que se preterisse uma outra da sua zona, que está ligado profissionalmente à área da comunicação social, que é divorciado desde Abril passado e... que é bissexual. E não fumava. Tudo isto dito sem interrogações da minha parte. Mas a conversa era muito civilizada e acabou por se tornar interessante, nomeadamente, sempre que se aprofundava determinado assunto. E aí também tornei-me mais participativo. Ao mesmo tempo que vigiava os seus filhos, que se encontravam à beira-mar, ele intervinha animadamente no nosso “debate”. Estou perante um homem culto e muito educado. Mesmo quando o assunto abordava facetas mais intimistas ele, surpreendentemente, não descia o seu nível de vocabulário. “Esta deve ser a única praia onde vejo mulheres sozinhas... Parecem mais livres aqui que noutro local qualquer... E ao mesmo tempo muito desejáveis“. Continua, “Sempre estive uma atracção semelhante por homens e mulheres. Sempre fui sincero nos meus relacionamentos e por tal nunca poderia esconder os meus desejos da minha esposa. E vivemos assim muito felizes mais de treze anos. O facto de ela ser uma pessoa magnífica, belíssima e inteligente também ajudou, claro.” Nesta altura ele ainda desconhecia que partilhávamos ideias e teorias muito semelhantes sobre alguns assuntos específicos. Depois disso, a conversa acabou por fluir ainda melhor, pois senti-o (ainda) mais à vontade. “Precisamos de nos libertar dos preconceitos e ideias pré-concebidas que esta sociedade conservadora nos impinge para nos tornarmos mais puros em relação à nossa existência - e sobretudo em relação à nossa sexualidade - e eu acredito que sempre estive no melhor caminho. Tenho plena consciência de que não é fácil e por isso não condeno quem não consiga dar os passos certos, quer seja por falta de coragem, quer seja por ignorância. Não posso é deixar de condenar quem opte pelo facilitismo de uma vida dupla, encoberta pela farsa e falso pudor. A mentira mata, sabias pá?” O “pá” não diria melhor.
Quase todo o seu desabafo não me sai da memória: “E o meu maior dilema sempre foi, é e será nunca poder amar integralmente uma mulher sem desejar simultaneamente estar com um homem, ou nunca conseguir ser plenamente fiel a um homem sem pensar em ter nos meus braços um corpo de uma mulher... Os meios-termos não me agradam. Acho que nunca irei deixar de ser este homem incompleto e eternamente insatisfeito que sou hoje.” Foi só esta frase que fez desviar os seus pequenos olhos dos meus em direcção ao mar.
Há muito tempo que não tinha um final de tarde de praia tão primoroso e cativante. De facto, não há gasóleo, portagens e quilómetros que paguem estes pequenos grandes prazeres da vida.
Quase todo o seu desabafo não me sai da memória: “E o meu maior dilema sempre foi, é e será nunca poder amar integralmente uma mulher sem desejar simultaneamente estar com um homem, ou nunca conseguir ser plenamente fiel a um homem sem pensar em ter nos meus braços um corpo de uma mulher... Os meios-termos não me agradam. Acho que nunca irei deixar de ser este homem incompleto e eternamente insatisfeito que sou hoje.” Foi só esta frase que fez desviar os seus pequenos olhos dos meus em direcção ao mar.
Há muito tempo que não tinha um final de tarde de praia tão primoroso e cativante. De facto, não há gasóleo, portagens e quilómetros que paguem estes pequenos grandes prazeres da vida.
1 comentário:
A sinceridade e convicção desse homem é desarmante, já para não falar da coragem. Com a honestidade emocional e sexual aí impressa, nem o mais puritano o poderá condenar.
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