A sequência reverência > violação > vingança é muito recorrente
na narrativa cinematográfica. Por regra, toda a violência que se aplica na
última fase desta sequência, é justificada pela brutalidade das cenas da fase
que a antecede. No fundo tenta-se implicar uma moral de que o(s)
estuprador(es) "recebem o que merecem". Por isso, passa a existir uma
atenção e dedicação exclusivamente na vingança, ao ponto de tornar este tipo de
filmes “fun to watch”, diria até, independentemente do grau de violência das
imagens. Também não é menos comum que a dose de violência seja equilibradamente
repartida entre o ato de violação e o da consequentemente represália.
Clichés atrás de clichés vai-se tentando justificar um certo
e sádico prazer de retaliação. Tanto que uma boa dose destas histórias trágicas
passam pela morte da vítima e a vingança até acaba por ser perpetuada pelo
familiar mais próximo. Portanto a vingança aparece então assim como um acto
transmissível post-mortem, como se as perspetivas de uma violação, da filha
violada ao pai justiceiro, pudessem ser sequer comparáveis. Portanto, grande
parte das obras perdem-se no estabelecimento da moralidade com o ato da
vingança, em vez de, por exemplo, debruçarem-se sobre as causas da própria
agressão sexual.
Uma das mais recentes obras que segue a referida sequência, chama-se “Violation” e é uma estreia em longa-metragem
da dupla Dusty Mancinelli e Madeleine Sims-Fewer - sendo que esta também é a
principal protagonista do drama. No entanto “Violation”, quebra todas as regras
do típico filme Rape-Revenge: as imagens do estupro resumem-se a pequenos
close-ups do momento, camuflados pela natureza onde o acto decorre, sendo que
toda a dose de violência e “pornografia” (fica desde já o aviso) é transferida
para a fase da vingança. O único corpo que se mostra e que acaba por ser
realmente “violado” é o do próprio violador. Trata-se de uma ambiguidade que
deixa toda a gente confusa, incluindo a crítica. Pelo que já li, trata-se de
uma estratégia pouco apreciada, por desencadear um certo distanciamento com a
audiência.
Pois é justamente a partir de todas estas opções inesperadas
que tornam este filme mais incómodo, mas, simultaneamente, mais interessante.
Pode não ser tão subversivo como “Irreversível”, mas a
disposição não linear de cenas e o misto de um sentimento de decepção e
insegurança que fica no final, por se achar que a punição possa não ter sido a
mais justa ou acertada, são, de certa forma, comparáveis com a referida obra de
Gaspar Noé. Depois, tudo o resto é incomparável. A começar no intrigante
paralelismo com o lado mais selvagem da natureza. Como referi, a violação aqui
não é sexual e fetichista como os outros filmes do género, em “Violation” só se
viola a ordem natural das coisas: a presa que caça e “come” o predador.
Destaca-se igualmente a complexidade das personagens,
sobretudo da principal, que revela uma certa frustração de não conseguir ser
feliz e de invejar a felicidade alheia. Basta pensar nos poucos, mas
importantíssimos momentos em que vemos lágrimas a escorrerem-lhe pela face.
Este filme parece querer revelar que uma violação nunca se
resume ao estupro de um corpo alheio e do consequente trauma, mas tudo o que
lhe antecede, tudo o que torna as pessoas mais carentes e vulneráveis, ao ponto
de se deixarem iludir por cortesias mal intencionadas ou por desígnios
incompreendidos.
Depois de “Nomadland”? Definitivamente: este ano cinematográfico
não poderia ter começado melhor.