quinta-feira, abril 15, 2021

Da violação na ordem natural das coisas


A sequência reverência > violação > vingança é muito recorrente na narrativa cinematográfica. Por regra, toda a violência que se aplica na última fase desta sequência, é justificada pela brutalidade das cenas da fase que a antecede. No fundo tenta-se implicar uma moral de que o(s) estuprador(es) "recebem o que merecem". Por isso, passa a existir uma atenção e dedicação exclusivamente na vingança, ao ponto de tornar este tipo de filmes “fun to watch”, diria até, independentemente do grau de violência das imagens. Também não é menos comum que a dose de violência seja equilibradamente repartida entre o ato de violação e o da consequentemente represália.

Clichés atrás de clichés vai-se tentando justificar um certo e sádico prazer de retaliação. Tanto que uma boa dose destas histórias trágicas passam pela morte da vítima e a vingança até acaba por ser perpetuada pelo familiar mais próximo. Portanto a vingança aparece então assim como um acto transmissível post-mortem, como se as perspetivas de uma violação, da filha violada ao pai justiceiro, pudessem ser sequer comparáveis. Portanto, grande parte das obras perdem-se no estabelecimento da moralidade com o ato da vingança, em vez de, por exemplo, debruçarem-se sobre as causas da própria agressão sexual.

Uma das mais recentes obras que segue a referida sequência, chama-se  Violation” e é uma estreia em longa-metragem da dupla Dusty Mancinelli e Madeleine Sims-Fewer - sendo que esta também é a principal protagonista do drama. No entanto “Violation”, quebra todas as regras do típico filme Rape-Revenge: as imagens do estupro resumem-se a pequenos close-ups do momento, camuflados pela natureza onde o acto decorre, sendo que toda a dose de violência e “pornografia” (fica desde já o aviso) é transferida para a fase da vingança. O único corpo que se mostra e que acaba por ser realmente “violado” é o do próprio violador. Trata-se de uma ambiguidade que deixa toda a gente confusa, incluindo a crítica. Pelo que já li, trata-se de uma estratégia pouco apreciada, por desencadear um certo distanciamento com a audiência.

Pois é justamente a partir de todas estas opções inesperadas que tornam este filme mais incómodo, mas, simultaneamente, mais interessante.

Pode não ser tão subversivo como “Irreversível”, mas a disposição não linear de cenas e o misto de um sentimento de decepção e insegurança que fica no final, por se achar que a punição possa não ter sido a mais justa ou acertada, são, de certa forma, comparáveis com a referida obra de Gaspar Noé. Depois, tudo o resto é incomparável. A começar no intrigante paralelismo com o lado mais selvagem da natureza. Como referi, a violação aqui não é sexual e fetichista como os outros filmes do género, em “Violation” só se viola a ordem natural das coisas: a presa que caça e “come” o predador.

Destaca-se igualmente a complexidade das personagens, sobretudo da principal, que revela uma certa frustração de não conseguir ser feliz e de invejar a felicidade alheia. Basta pensar nos poucos, mas importantíssimos momentos em que vemos lágrimas a escorrerem-lhe pela face.

Este filme parece querer revelar que uma violação nunca se resume ao estupro de um corpo alheio e do consequente trauma, mas tudo o que lhe antecede, tudo o que torna as pessoas mais carentes e vulneráveis, ao ponto de se deixarem iludir por cortesias mal intencionadas ou por desígnios incompreendidos.

Depois de “Nomadland”? Definitivamente: este ano cinematográfico não poderia ter começado melhor.

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