Um destes dias partilhei com um amigo aquilo que sentia pela região norte do nosso país e lembro-me o quanto difícil foi arranjar explicações para tais sentimentos, pois tal me parecia, de certa forma, inexplicável. Sempre que visitava (e visito) esta região descubro coisas novas e, salvo raras excepções, sempre agradavelmente surpreendentes e encantadoras. Seja uma terrinha nova, uma vila ou uma cidade, uma expressão nortenha, uma tasca, uma iguaria... Seja o carinho, a hospitalidade e a humildade de mais um(a) amigo/a. Viajo sempre com uma grande ansiedade e os trezentos e tais quilómetros fazem-se com o melhor das disposições. Mas o mais difícil de explicar são as despedidas. Pois é, o regresso deixa-me deprimido e nostálgico e fico sem palavras para definir o que sinto pelo o que deixei para trás. Nenhuma outra região em Portugal me deixa assim.
Entretanto, ele passou-me este artigo do Miguel Esteves Cardoso que saíu na revista Capa K há quinze anos atrás, que poderá explicar, em parte, estas emoções e do qual partilho por aqui, de seguida, alguns parágrafos.
"(...)No norte a comida é melhor. O vinho é melhor. O serviço é melhor. Os preços são mais baixos. Não é difícil entrar ao calhas numa taberna, comer muito bem e pagar uma ninharia. Estas são as verdades do Norte de Portugal. Mas há uma verdade maior. É que só o Norte existe. As partes mais bonitas de Portugal, o Alentejo, os Açores, a Madeira, Lisboa, et caetera, existem sozinhas. O Sul é solto. Não se junta. Não se diz que é do Sul como se diz que é do Norte. No Norte dizem-se e orgulham-se de se dizer nortenhos. Quem é que se identifica como sulista? No Norte, as pessoas falam mais no Norte do que todos os portugueses juntos falam de Portugal inteiro.
(...)No Norte, Portugal tira de si a sua ideia e ganha corpo. Está muito estragado, mas é um estragado português, semi-arrependido, como quem não quer a coisa. O Norte cheira a dinheiro e a alecrim. O asseio não é asséptico – cheira a cunhas, a conhecimentos e arranjinho. Tem esse defeito e essa verdade.
(...)O Norte é a nossa verdade. Ao princípio irritava-me que todos os nortenhos tivessem tanto orgulho no Norte, porque me parecia que o orgulho era aleatório. Gostavam do Norte só porque era do Norte. Assim também eu. Ansiava por encontrar um nortenho que preferisse Coimbra ou Algarve, da maneira que eu, lisboeta, prefiro o Norte. Afinal, Portugal é um caso muito sério e compete a cada português escolher, de cabeça fria e cabeça quente, os seus pedaços e pormenores.Depois percebi. Os nortenhos, antes de nascer, já escolheram. Já nascem escolhidos. Não escolhem a terra onde nascem, seja Ponte de Lima ou Amarante, e apesar de as defenderem acerrimamente, põem acima dessas terras a terra maior que é o “O Norte”. Defendem o Norte em Portugal como os portugueses haviam de defender Portugal no mundo.Este sacrifício colectivo, em que cada um adia a sua pertença particular – o nome da sua terrinha – para poder pertencer a uma terra maior, é comovente. No Porto dizem que as pessoas de Viana são melhores do que as do Porto. Em Viana, dizem que as festas de Viana não são tão autênticas como as de Ponte de Lima. Em Ponte de Lima dizem que a vila de Amarante ainda é mais bonita.
O Norte não tem nome próprio. Se o tem não o diz. Quem sabe se é mais Minho ou Trás-os Montes, se é litoral ou interior, português ou galego? Parece vago. Mas não é. Basta olhar para aquelas caras e para aquelas casas, para as árvores, para os muros, ouvir aquelas vozes, sentir aquelas mãos em cima de nós, com a terra a tremer de tanto tambor e o céu em fogo para adivinhar.
O nome do Norte é Portugal. Portugal, com nome de terra, como nome de nós todos, é um nome do Norte. Não é só o nome do Porto. É a maneira que têm de dizer “Portugal” e “Portugueses”. No Norte dizem-no a toda a hora, com a maior das naturalidades. Sem complexos e sem patrioteirismos. Como se fosse só um nome. Como “Norte”. Como se fosse assim que chamassem uns pelos os outros. Porque é que não é assim que nos chamamos todos?"
in "Norte, Nome de Portugal", Miguel Esteves Cardoso, Revista Capa K, Novembro 1990
Zé, muito obrigado!
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