sexta-feira, agosto 17, 2007

A teoria da atracção não correspondida e da auto-estima excessiva

O livro “Última saída para Brooklyn” de Hubert Selby Jr. (autor, entre outras obras, de “Requiem for a Dream”, que, tal como o referido, foi adaptado para cinema) é um clássico alternativo – a bolinha vermelha no canto superior direito da capa do livro é simbolicamente esclarecedora - da literatura americana da década de 60. Trata-se de um conjunto de contos protagonizado por um grupo de jovens marginais, um grupo de travestis, um grupo de trabalhadores de uma fábrica e pouco mais. Todos eles se vão inter-relacionando ao longo dos vários contos por entre as ruas, bares e clubes nocturnos de Brooklyn. Revela um interessante estudo sociológico sobre as classes mais desfavorecidas a viver naquela zona da cidade Nova Iorque, durante os anos 50. No entanto, qualquer grupo social abordado ao longo das histórias acaba por ser meramente um pretexto para se demonstrar que a psique de cada um dos seus elementos é reconstituída dentro da dinâmica das relações de poder e de desejo sexual.
O conto mais longo chama-se “Greve” e relata a história de um grupo de trabalhadores de uma fábrica que, coadjuvados por um grupo sindical bastante influente, decidem iniciar uma greve por melhores condições salariais. Harry Black é o verdadeiro impulsionador desta luta. É ele que faz a ligação da classe trabalhadora (onde se inclui) com os dirigentes sindicais. Supostamente tomaria-se Harry como uma personagem autoritária e respeitada. Julga ser, mas não o é. É um mero peão nesta guerra de interesses: trabalhadores e sindicato versus patronato. Os primeiros tratam-lhe com indiferença e só estabelecem relações com este anti-herói por necessidades de ordem profissional (Harry é o responsável pelo carimbo das cadernetas do sindicato que os trabalhadores teriam que apresentar todos os dias da greve, sempre que se manifestavam em frente à fábrica); os segundos (sindicato) só precisam basicamente de um “bufo” – e este é um papel que ele desempenha muito bem - entre os operários; e, por fim, o patronato abomina-o. Para juntar ao lote, Harry também se relaciona com um bando de marginais. Ele sente-se bem na sua companhia; eles, só pretendem beber a cerveja que o sindicato fornece, desprezam-no.
Harry é casado mas não suporta a mulher que o ama (e que se deslustra por aquele casamento). Ele, quando não lhe bate, trata-a com indiferença. E este era justamente e curiosamente o tratamento que ele leva pelos já referidos colegas da fábrica, pelos marginais e pelos travestis que ele tanto admira - sobretudo a sua feminilidade - e engata num clube nocturno. “Elas” só se interessam pelo seu sexo e, sobretudo, pelo seu – do sindicato - dinheiro. Despacham-no logo que ele começa com a conversa fiada.
O principal interesse das personagens deste livro está nesta disparidade de pólos de atracção não correspondidos e nas ilusões de poder e de supremacia auto-criadas (que dão origem, por exemplo, à excessiva auto-estima de Harry face ao grupo social onde está inserido).
É de um realismo arrepiante: não valorizamos a admiração que alguém tem por nós, em contrapartida veneramos alguém que não nos conhece, ou que nem sequer dá pela nossa presença, ou mesmo que até nos chega a tratar mal. Por vezes, também criamos ilusões de excessivo poder e controlo, quando no fundo tudo isso tem origem num conjunto de interesses por parte dos outros. Eles são os “interesseiros” mas só nós (as “vítimas” dos seus interesses) é que não vemos isso. Ou não queremos ver.
Óbvio, a história de Harry acaba surrealmente (como todos os contos deste livro) mal.


Não conheço a versão original, no entanto parece-me assim um pouco para o despropositado, nesta versão portuguesa, o excessivo uso da designação “bicha”, sempre que o autor dos vários contos pretende fazer referência a um travesti. Como acontece, quando descreve a fauna num baile de travestis: há “as bichas vestidas de mulheres” e “há os homens que não estavam vestidos de mulher”, que eram no fundo, “os larilas que deambulavam com as outras bichas”. Este é só um pequeno exemplo como este tradutor, consegue ser “claríssimo” nos seus propósitos descritivos (e catalogativos).

4 comentários:

Daniel J. Skråmestø disse...

Não sei se será tanto culpa do tradutor, nós em portugal é que temos o vocabulário gay pouco utilizado em produtos culturais, que é o meio previligiado para fixar o significado das palavras. Há sempre grandes discussões para discutir os limites abrangencias dessas palavras. Por exemplo, onde está a diferença entre panilas e paneleiro? Será rabeta mais ofensivo que larilas ou vice versa?
etc...

agent disse...

Para mim não há sequer diferenças. Se são todas ofensivas, serão nem mais nem menos que isso, venham elas da boca do josé malhoa ou das mãos do tradutor. O objectivo está implícito na palavra: a injúria.
No entanto, pelo que me dá entender o enquadramento das personagens femininas na realidade social deste livro, parece-me que, aqui estamos a jogar noutro campeonato.

O Puto disse...

Também acho interessante a dualidade dominador/dominado quando o sujeito está em meios diferentes (laboral, social ou familiar).
Quanto às traduções, por mais fiéis que tentem ser à obra original, resultam sempre em deturpações. São as consequências da Torre de Babel. Com as outras formas artísticas (não verbais) isso não acontece.

Anónimo disse...

É um belo texto. Ainda o estou a ler mas pelo contrário acho que não teria lógica nenhuma tratar-se os travestis por travestis e os homossexuais por homossexuais. Toda a linguagem utilizada no livro é coloquial, exagerada e aberrante. Se há coisa à qual nenhuma daquelas personagens dá qualquer valor é à linguagem, por isso utilizam-na da forma mais reles. É naturalíssimo, não nos podemos esquecer das circunstâncias sociais destes personagens. Porque se nos esquecermos somos uns malvados e os malvados são para a cadeia!