Ele está por todo o lado. Todos nós o sentimos ao longo dos nossos dias e das nossas noites. Mas haverá forma de o transformar em algo de mais estático, algo que se pudesse ver e rever, ler, tocar...? É possível materializar o desejo? Recorri a algumas formas de arte para o tentar demonstrar. Proponho de seguida três exemplos que julgo conseguirem responder afirmativamente a tais questões e, ao mesmo tempo, justificá-las.
Literatura
Retirado do livro “Esfolado Vivo” de Edmund White, deixo este breve e admirável trecho:
“(...)
O cheiro a madressilva era muito forte e ele pensou que nunca tivera realmente os tipos que queria, os grandes matulões do liceu, os louros com fortes vozes de tenor, hálito de cerveja, sorrisos cruéis, ancas magras, de olhar fixo e insolente, os tipos com quem era impossível fazer amizade se não se fosse exactamente como eles. Pensou que com tantos milhões de pessoas no mundo devia haver uma possibilidade de ele ter agradado pelo menos a um tipo assim, mas as coisas não se tinham passado desse modo. É claro, mesmo quando se tinha alguém, o que é que se tinha?(...)
Depois lembrou-se de que fora por ali que o rapaz ruivo mijara um circulo castanho e Luke procurou vestígios dessa mancha debaixo de uma árvore. Tocou mesmo na terra, sentindo a humidade. Perguntou a si mesmo se o simples facto de alimentar aquele chocante pensamento não seria suficiente para o seu objectivo; mas não, ele preferia a cerimónia de fazer qualquer coisa real.
Achou o Lugar – ou assim julgou – e levou a terra aos lábios. Recomeçou a correr, mastigando o saibro como se isso pudesse ajudá-lo a recuperar o passado, se não a saúde. A transfusão de terra húmida deu-lhe mesmo um novo acesso de energia.”
Escultura
“Os Pugilistas” de Giochino Chiesa
Qualquer escultura poderá moldar ideias e sentimentos em sentido figurado mas por vezes, e como acontece com esta, em sentidos opostos. Vemos dois boxeurs, numa sessão de luta (a violência, o ódio?) mas num momento em que parecem auxiliar-se mutuamente, de tal forma que sugere um abraço (o afecto). Para baralhar mais as nossas ilações: estes homens lutam nus! Serei o único a ver desejo neste combate?
Cinema
Só com muita ignorância e incompreensão se pode rotular esta obra como um filme gay!
“O Fantasma” de João Pedro Rodrigues é um dos mais interessantes e complexos filmes portugueses dos últimos tempos. Acompanha a rotina de Sérgio, tanto no seu trabalho (recolha de lixo – profissão não escolhida ao acaso: haveria outra melhor para representar alguém que existe e que parece não se ver? A Profissão-Fantasma?) como em deambulações solitárias pela noite na cidade de Lisboa. Mas este filme não é só isto, também é um ensaio sobre a natureza animal do ser humano. A personagem principal vive em constante desejo, seja em relação a outros homens, a uma mulher (Fátima; neste caso, parece-me, é ele que se torna o objecto de desejo), por determinados objectos ou até por si próprio. Ele não parece ter (nem deseja conseguir) qualquer controlo sobre os seus sentidos.
Não deixa de ser curioso que a personagem com quem Sérgio se relaciona melhor afectivamente, seja, nem mais nem menos, que o seu próprio cão. E encontramos o sentido mais profundo desta relação nos seus comportamentos "caninos" através dos quais Sérgio dá corpo à sua pulsão sexual: a marcação de terreno com a urina, as brincadeiras iniciais com Fátima, ou as lambidelas no balneário (cena magnífica).
A máscara, na qual o personagem se refugia, também poderá adquirir múltiplos significados. No entanto torna-se evidente que é com ela que Sérgio avança para concretizar os seus mais íntimos desejos, seja para invadir a privacidade do rapaz que tanto quer (“Ninguém pode viver sem amor”, a frase que curiosamente surge no topo do cartaz deste filme... sim, “O Fantasma” também é sobre o amor e a solidão) ou na sequência final, em que parece perder todo o contacto com a racionalidade e deambula, já quadrúpede, numa lixeira, mas sempre atrás de algo desejado (um coelho, por exemplo). A máscara do desejo, portanto. Todos temos a nossa mas todos o saberão?
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